*Por Dra. Vivian Quito
O autismo, ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), é um diagnóstico bem estabelecido em humanos, com critérios rigorosos definidos no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). No entanto, é cada vez mais comum que tutores – e até mesmo alguns profissionais – observem comportamentos atípicos em cães e gatos que, à primeira vista, lembram características do autismo humano. Padrões repetitivos, dificuldades na interação social e comportamentos compulsivos são algumas das manifestações que despertam esse tipo de comparação.
Mas será que é possível falar em autismo em animais? O vídeo “Meu cachorro é autista?”, do canal Ciência Todo Dia, é um bom ponto de partida para entender o tema à luz da ciência. A resposta direta é que não há, até o momento, qualquer consenso científico que valide o diagnóstico de autismo em cães ou gatos. A medicina veterinária não possui critérios diagnósticos específicos ou padronizados que justifiquem essa analogia. Afinal, o autismo humano está intrinsecamente ligado a habilidades cognitivas complexas, linguagem e formas específicas de interação social — aspectos que simplesmente não são aplicáveis da mesma forma a espécies não humanas.
Leia mais:
- Cachorro ofegante: veja quando o comportamento é normal e quando merece atenção
- Previna o acúmulo de bolas de pelo no seu gato com cuidados simples
- Outono seco agrava alergias em cães e gatos
A ideia de um “autismo animal” muitas vezes nasce de uma interpretação antropomórfica: projetamos características humanas nos comportamentos dos nossos pets. Quando um cão evita contato, age de maneira incomum ou parece não gostar de carinho, isso não significa que ele tenha autismo. O mais provável é que esteja manifestando sinais de ansiedade, algum tipo de distúrbio compulsivo, alterações sensoriais ou até questões neurológicas.
Estudos científicos ajudam a entender melhor esse fenômeno. Um trabalho de Harris e Prouvost, publicado na PLOS ONE em 2014, investigou comportamentos que poderíamos interpretar como “ciúmes” em cães. Embora alguns desses padrões se pareçam com manifestações do espectro autista, os pesquisadores apontam causas mais plausíveis, como transtornos compulsivos, ansiedade generalizada ou reações a ambientes pouco estimulantes. Revisões da literatura também destacam fatores diversos que podem gerar comportamentos considerados “atípicos”, como o estresse crônico, distúrbios compulsivos (frequentes em raças como Bull Terrier e Doberman), déficits sensoriais ou falhas na socialização precoce dos filhotes.
Em 2016, um artigo publicado na Journal of Veterinary Behavior, assinado por Overall, reforçou a importância de se evitar interpretações baseadas em parâmetros humanos. Cada comportamento animal deve ser compreendido a partir da etologia da espécie, do contexto ambiental e do histórico clínico do pet. A tentativa de associar o autismo ao comportamento animal pode atrapalhar mais do que ajudar, levando a diagnósticos errados e à negligência de problemas reais que poderiam ser tratados adequadamente.
Ainda assim, vale mencionar que alguns estudos tentaram investigar padrões de comportamento repetitivo em animais, como estereotipias em Bull Terriers, e chegaram a levantar hipóteses sobre possíveis paralelos com o autismo. No entanto, essas pesquisas não foram capazes de concluir que existe um equivalente verdadeiro ao TEA em cães. Como destaca o vídeo já mencionado, não há qualquer protocolo ou estudo robusto que comprove a existência de autismo em animais — apenas comportamentos semelhantes que, ao serem examinados com mais profundidade, revelam causas distintas.
Por outro lado, mesmo que animais não sejam autistas, eles podem ter um papel valioso na vida de pessoas que estão dentro do espectro. Estudos como o de Martin et al. (2017) demonstram que a convivência com cães e gatos traz benefícios concretos para indivíduos com TEA. A presença de um animal de companhia pode reduzir comportamentos de isolamento, estimular a comunicação não verbal, diminuir a ansiedade e o estresse, e ainda promover melhorias significativas na rotina e no bem-estar emocional. Por isso, a interação com pets tem sido cada vez mais utilizada como terapia complementar no acompanhamento de crianças autistas — e com resultados muito positivos.
Em resumo, ainda que seja tentador interpretar certos comportamentos de cães e gatos à luz das experiências humanas, o diagnóstico de autismo em animais não se sustenta cientificamente. O que se observa, na maioria dos casos, são manifestações de outras condições clínicas que merecem atenção e tratamento adequados. Ao abandonar interpretações antropomórficas, abrimos espaço para uma abordagem mais precisa e respeitosa com o bem-estar dos nossos companheiros de quatro patas.